O TEMPO COM TEMPO PARA PENSAR

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Quando o tempo é bom para refletir eu sempre quero começar com a filosofia helênica; o que me remete, desta vez, a um curto verso do célebre poeta Eurípedes: “O tempo dirá tudo à posteridade; mesmo que nada lhe seja perguntado”. Sim, um dia será assim por ali, naquelas terras acolá; onde tantas águas ainda passarão tranquilamente sob a ponte, e onde há, também, acreditem, quem que não se fazem parcelas, mas não se bastam; querem mais (ou menos); vão além e amiúdam-se, ainda mais, ante um submundo tacanho e inservível; ou, quem sabe, servindo sim, em última análise, de mal exemplo; o que os fazem, enfim, ter uma razão compreensível e bisonha de ser e/ou existir. Que fazer? “Você nunca vai chegar ao seu destino se parar e atirar pedras em cada cão que late”, muito bem disse o ex-primeiro ministro inglês Winston Churchill. Mas nem todos estão surdos, nem todas as bocas estão mudas, nem todos os olhos estão míopes. Não vai muito longe aquele tempo; duros tempos de vidas imersas

QUE FALTA VOCE ME FAZ, LUZINEIDE!

Foto: www.ab-imagensincriveis.blogspot.com
Viver é fazer escolhas, encarar os desafios, fazer o que tem que ser feito e assumir as conseqüências; alguém já disse. Posso dizer que ao longo da vida tenho sido um tanto assim; revirando todas as pedras do caminho; tentando, experimentando, buscando, garimpando felicidade, dando a cada uma das possibilidades, ainda que ínfima e efêmera, uma chance para o que for semente poder florir.

Desde janeiro deste ano cada um dos meus dias tem sido estar diante do, talvez, maior desafio enfrentado até hoje. Estou Secretário de Administração e Finanças da minha cidade, membro de uma orquestra que se apresenta da alvorada ao crepúsculo sob a batuta de um maestro incansável a procura de uma nova canção para os ouvidos de quem apostou em seu trabalho.

Há pouco mais de duas semanas, de todos esses dias de árduo trabalho, fui sentenciado a viver os mais dolorosos de todos até aqui. Uma recomendação do Ministério Público deixou pouco mais de 300 pessoas sem seus empregos. Não quero e não vou questionar aqui a legalidade da medida, limitar-me-ei, apenas, à fronteira do meu entendimento e da minha capacidade de sentir a dor alheia e avaliar bem o que é perder o chão ao perder a fonte de sustento para uma família. Muito simples, talvez, para se descrever aqui em palavras, mas, certamente, dramático para quem vive esse terrível infortúnio.

Vi olhares distantes; eram angustias suportadas num silêncio voraz. Vi lágrimas em rostos desesperançados. Ouvi desabafos descontrolados de vozes trêmulas de homens e mulheres olhando um horizonte incerto. Ser impedido de socorrer, descobri, é a pior experiência que se pode viver.

Ao final desses dias voltei para casa cheio de interrogações sem respostas. Muitas reflexões, milhares de impressões fortes antes do sono chegar. Fiquei impotente para atenuar tantas angustias, tantas revoltas e, por um instante quis não estar ali se não podia fazer nada. Desejei ter estudado menos, ter menor conhecimento de toda essa organização dita justa e facilitadora, e saber menos dos males e das maldades construídas para oprimir uns e privilegiar outros.

Obviamente que seria uma utopia, e meus desejos não passavam de uma doce ilusão. Mas encontrei nesse pensamento um lenitivo para minha alma ferida. E, então, olhando para o teto do meu quarto, a mente viajou e lembrei-me de uma história vivida há mais de dez anos. Fechei os olhos e naveguei em busca daquele lugarejo, e acreditei que se fosse parte daquela gente e vivesse aquela realidade, certamente hoje sofreria bem menos. Mas por quê?

Vou abrir aqui um capítulo da minha vida! Tenho muitos sonhos realizados e muitos que ainda luto para torná-los verdade. Nunca fui de sonhar com o impossível e por isso posso dizer que não faltam muitos. Eu tinha um sonho de fazer uma viagem de trinta dias pelo Brasil sozinho, sem que ninguém ficasse sabendo o roteiro da minha viagem e não houvesse nenhuma possibilidade de comunicação de qualquer pessoa comigo durante essa excursão solitária. E por que, sozinho? Alguém talvez queira perguntar. Minha intenção era conhecer novas pessoas, fazer novas amizades a partir do acaso, sem a intermediação de ninguém. Há pouco mais de dez anos atrás consegui essa façanha. É bem verdade que com 20 dias o dinheiro acabou e eu voltei, mas o sonho foi realizado (risos...).

Saí de Piracuruca e fui para Teresina, nossa capital; de lá parti para São Luiz, capital maranhense. Depois segui para Brasília, de onde rumei para São Paulo, a maior cidade brasileira; e a partir dali uma “turnê” pelas principais cidades do interior do estado. De volta a São Paulo voei para Fortaleza. Foi um tempo em que a extinta VASP estava mergulhada numa crise irreversível e os seus vôos sofriam constantes atrasos tornando as viagens mais longas..... o que para mim não representava problema nenhum, eu não tinha pressa. Mas seguindo o meu roteiro secreto, de Fortaleza fui para o próximo destino, o que nos interessa, onde se passou a minha história.

Cheguei numa cidade do interior do Ceará, chamada Icapuí. O município litorâneo fica localizado já próximo com a divisa com o Rio Grande do Norte. Depois de algumas horas na sede do município segui de “bugue” para uma praia onde ainda não havia chegado sequer energia elétrica; uma comunidade de pescadores com aproximadamente uma centena de casas e apenas três ruas sem qualquer pavimentação. Foram oito quilômetros seguindo por uma trilha de areia conversando com o habilidoso motorista.

Depois da acomodação numa pousada, sentado na pracinha de frente para o mar, para onde todos vão ao finalzinho da tarde; conheci uma professora primária chamada Luzineide. As pessoas ali tinham a pele branquinha, os olhos azuis e o rosto rosado, tostado pelo sol e o calor muito forte. Com minha pele grafitada não foi difícil chamar bastante a atenção no pequeno distrito.

Ela, com pouco mais de vinte anos, tinha nos seus olhos azuis um brilho intenso de fé e de boas intenções em tudo; os cabelos loiros e lisos pouco abaixo dos ombros, ela algumas vezes os prendia fazendo realçar o seu rosto fino e rosado; e na maioria das vezes os deixava livres para o vento coreografá-los em todas as direções. Uma moça simples, inteligente, honesta, sincera. Alguém para se conhecer e nunca mais se esquecer. 

Era uma jovem cheia de sonhos bonitos, apaixonada pela sua sala de aula e tinha grande facilidade de se expressar. Ficamos amigos e durante os quatro dias que fiquei ali, conversamos durante horas e horas; confrontando nossas realidades, unindo os nossos contrastes, e no final de cada dia caminhando pela areia, olhando as ondas, chutando as algas trazidas por elas, e algumas vezes, fomos para além do povoado, para além dos olhares, trocando o dia por um pedacinho curto da noite ainda meio clara, trocando as preocupações por instantes de doces poesias que a própria vida escrevia e permitia entre uma tarde e o anoitecer.

Depois que fui embora, por algum tempo a comunicação ainda se manteve e sabíamos da vida de cada um, mas depois o tempo e a distância foi desbotando essa ligação. Não sei o que ela fez dos seus projetos e da sua vida, certamente cansou de olhar para a estrada. Mas o milagre da rede mundial de computadores poderá, quem sabe, levá-la a deparar-se com esta postagem. O que é fato é que aquela comunidade de pessoas boas, simples, carentes e hospitaleiras permanece nitidamente viva na minha mente e irá comigo até o derradeiro abrigo.

Ao lembrar-me desses dias, mais de uma década depois, parei e pensei olhando para o teto do meu quarto numa dessas noites de angustias. E se não tivesse voltado para casa naquele tempo? E se tivesse me tornando, como muitos ali, um pescador? No final da tarde eu voltaria para casa com minhas redes cheias de peixes para alimentar a família, e depois do jantar sentaria na pracinha com a professora primária para falar sobre a prestação da parabólica e os planos para a Bolsa Família na próxima semana. Tudo muito pequeno, muito simples e muito menos angustiante. Mas o destino não me deixou lá, trouxe-me de volta prá cá; como que, talvez, a dizer que seria preciso, de alguma forma, experimentar. Tanto aqui, quanto lá.

Nunca fui de fugir às responsabilidades, nem contar tudo isso seria tentar escapar. Mas estou certo que as leis criadas por homens interessados muito pouco na vida das pessoas comuns e muito mais nos seus próprios interesses, não constrói uma sociedade tranqüila e feliz como aquela de pescadores. Não sei que mundo hoje está sendo construído para nossos netos. Que falta você me faz, Luzineide!

Comentários

  1. Raimunda Araújo - Codó-MA12 de junho de 2013 às 22:56

    "Quando alguém compreende que é contrário à sua dignidade de homem obedecer a leis injustas, nenhuma tirania pode escravizá-lo."
    Mahatma Gandhi

    Caro amigo Manoel, como dissera Voltaire:
    "A política tem a sua fonte na perversidade e não na grandeza do espírito humano".

    PARABÉNS PELA SUA NARRATIVA!ELA MOSTRA CLARAMENTE A SUA VISÃO DE MUNDO, UM PERFEITO CONHECIMENTO DA REALIDADE QUE LHE CERCA E O MAIS IMPORTANTE: O SEU LADO HUMANO. ABRAÇOS.

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    1. Obrigado, amiga! Um forte abraço e tudo de bom para voce e sua família.

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